Mantidas as definições do Decreto 5.820, a TV digital não trará novidades significativas ao modelo de serviços hoje adotado na radiodifusão.

Desde 2003, o Intervozes participa ativamente dos debates acerca da implantação da TV digital aberta no Brasil. Não foram poucos os momentos em que, publicamente, manifestamos as nossas posições, apoiando os princípios estabelecidos pelo Decreto 4.901/03, que buscavam fazer da introdução da televisão digital no Brasil um instrumento de inclusão social e democratização do principal meio de comunicação do país, assim como buscamos apontar os caminhos necessários para que a nova tecnologia impulsionasse a pesquisa e indústria nacional, especialmente no setor da microeletrônica.

Também não foram poucos os momentos e espaços em que manifestamos profundas divergências com os rumos da TV digital brasileira determinados pelo governo federal, especialmente a partir da nomeação pelo presidente Lula do radiodifusor Hélio Costa para o Ministério das Comunicações, quando a sociedade civil viu as portas do diálogo serem fechadas pelo novo ministro, que simultaneamente estendeu tapetes vermelhos para que as Organizações Globo determinassem o futuro da transição tecnológica.

Com Hélio Costa conduzindo o processo, a sociedade civil brasileira viu frustrado o sonho de que a TV digital viesse a alterar o modelo da radiodifusão brasileira, ainda longe de refletir a diversidade e a pluralidade existentes no país. Foi então que, em junho de 2006, em plena Copa do Mundo de futebol e às vésperas das eleições presidenciais, o governo federal publicou o Decreto 5.820, consolidando todas as principais demandas dos radiodifusores para o SBTVD – Sistema Brasileiro de TV Digital.

Com o início das transmissões oficiais no último dia 02 de dezembro, em São Paulo, representantes do governo federal insistem em divulgar o SBTVD como uma conquista “histórica”, que terá impactos positivos em políticas públicas e que “incluirá” o cidadão digitalmente.

Frente à falta de transparência com a sociedade brasileira por parte do Executivo, o Intervozes julga necessário esclarecer:

1.A implantação da TV digital terrestre no Brasil trazia o potencial de aumentar radicalmente o número de programações televisivas e, conseqüentemente, democratizar o principal meio de comunicação do país. Com uma maior capacidade de compressão de sinais, seria possível garantir espaço para aqueles que hoje estão ausentes da programação da TV, em especial às emissoras públicas e sem fins lucrativos, como as comunitárias e universitárias. Mas, infelizmente, essa não foi a opção do governo federal, que destinou às emissoras comerciais mais uma fatia do espectro, tornando o atual latifúndio um latifúndio improdutivo.

2.Essa entrega do espectro não se deu por meio de uma nova concessão, mas por consignação direta àquelas emissoras que já tinham concessões de TV aberta, já que a TV digital não foi considerada um novo serviço. Com isso, ela não passou pelo Congresso (como obriga a Constituição no caso das concessões) e ainda criou uma aberração, pelo fato de a TV digital possibilitar a oferta de outros serviços, como a multiprogramação ou recursos interativos. Perdeu-se também a oportunidade de impor obrigações às concessionárias, que seguem utilizando um bem público sem praticamente nenhuma obrigação em relação ao conteúdo transmitido. Na prática, reforçou-se o modelo concentrador e permissivo atualmente praticado nas concessões de rádio e TV.

3.Os recursos interativos, idealizados para tornarem-se um instrumento de inclusão social e digital num país onde menos da metade da população tem acesso à Internet também não se concretizarão, pelo menos nos próximos anos. Isso porque o governo federal não determinou que os conversores necessariamente tenham capacidade de processar os recursos interativos, nem implantou uma política para o uso de um canal de retorno a baixo custo, ambas questões fundamentais para incluir digitalmente a parcela da população sem condições financeiras de conectar-se à Internet por meio do pagamento de um serviço de banda-larga. Além disso, não há qualquer política para o desenvolvimento dos recursos interativos de interesse público (serviços de e-gov, e-banking, email, serviços de saúde e educação), deixando para que o mercado implante, de acordo com suas demandas e interesses, os futuros recursos interativos da televisão digital. Ou seja, além de desperdiçar a chance de democratizar a TV, o governo também jogou fora a possibilidade de incluir digitalmente milhões de brasileiros que hoje não têm acesso à Internet.

4.A mobilidade e a portabilidade prometidas também não devem se tornar realidade num futuro próximo. Isso porque as empresas de telefonia celular – que financiam ao consumidor os aparelhos – não têm interesse em embarcar nos telefones um chip de recepção do padrão japonês, que encarecerá o custo dos aparelhos e em nada agregará valor ao negócio destas empresas. Não à toa, desde 2005 executivos das Organizações Globo apostam na mobilidade a partir de um aparelho exclusivo para este fim.

5.Da mesma forma, ao contrário do que se prometeu durante a assinatura do acordo com os japoneses, não houve e nem haverá qualquer transferência de tecnologia para o Brasil. O acordo formal assinado entre os dois governos também não sairá do papel, pelo simples fato de que não constam, no acordo, obrigações, mas somente intenções de ambos os governos. Internamente, não houve qualquer esforço para a criação de uma política industrial compatível com as necessidades do país. Ou seja, a televisão digital brasileira não será aproveitada como mecanismo de indução do desenvolvimento industrial nacional, infelizmente.

6.O alto preço dos conversores também é fruto de opções equivocadas do governo federal, que decidiu pela adoção do padrão de modulação mais caro entre todos os disponíveis internacionalmente, como já apontavam as pesquisas financiadas pelo próprio governo. Muito menos buscou-se aproveitar o padrão de modulação desenvolvido nacionalmente, que poderia, por ser aberto e nacional, não acarretar no pagamento de royalties. Além disso, ao promover alterações no próprio padrão japonês (não com inovações nacionais, diga-se, e sim com outras tecnologias internacionais) sem a necessária articulação com outros países, tornou o padrão adotado no Brasil único no mundo, isolando o país e diminuindo a possibilidade de redução de preços a partir do aumento da escala de produção.

7.A propaganda feita em torno da Alta Definição (única real inovação da TV digital, e certamente a menos importante) não pode ser entendida como uma “conquista” para os brasileiros. Afinal,  trata-se de uma evolução inerente a qualquer tecnologia digital. Mais do que isso, a Alta Definição em nada alterará o cenário concentrado e pouco plural da televisão e, além disso, forçará uma ocupação do espectro desnecessária, já que a maioria da população não assistirá a programação em alta definição. Em primeiro lugar, porque os conversores capazes de codificá-la não saem por menos de R$ 1.000,00. Segundo, porque, além de comprar este conversor, o consumidor deverá também comprar um televisor que não sai por menos de R$ 4.000,00. Terceiro, porque, caso deseje comprar um televisão HD com o receptor digital incluído, deverá gastar no mínimo R$ 8.000,00, todos estes valores estão longe da realidade da imensa maioria da população brasileira. Ou seja, ocupa-se mais espaço no espectro de freqüências para que poucos e abastados tenham o privilégio de assistir imagens em alta definição.

Em resumo, a televisão digital, mantidas as definições do Decreto 5.820, não trará novidades significativas ao modelo de serviços hoje adotado na radiodifusão. Ao contrário, tudo indica que o Brasil está a caminho de criar um apartheid televisivo, com uma qualidade de imagem para os mais ricos e outra para a maior parte da população brasileira.

Ou seja, a transmissão pode ser digital, mas infelizmente continua tudo igual.